24/10/24
Corte amplia crise de tradicional setor de pesquisa da Argentina
Por Roberto Lameirinhas
Marcelo Rabossi, profesor de las Especializaciones y Maestrías en Educación, fue entrevistado por el medio brasileño Valor Econômico sobre la producción científica de Argentina.
Apesar de ter dado à Argentina três prêmios Nobel em ciências - dois de medicina e um de química - e de seu reconhecimento mundial de excelência, a comunidade científica do país se ressente da falta de financiamento. A situação das universidades já era difícil há anos e o problema se aprofundou com os cortes de orçamento da política de “déficit fiscal zero” do presidente argentino, Javier Milei.
Na visão do presidente, os gastos com pesquisa devem ser custeados pela iniciativa privada. Ele acusa acadêmicos e cientistas de integrar a “casta” da elite que se dedica a “parasitar” o Estado.
“Os supostos cientistas e intelectuais creem que seus títulos acadêmicos os tornam seres superiores e, por isso, temos de subsidiar sua vocação. Eu os convido a sair ao mercado com suas pesquisas e ver se pessoas se interessam por elas, em vez de esconder-se canalhamente atrás da força coercitiva do Estado”, disse Milei em fórum direitista em setembro.
“Os supostos cientistas e intelectuais creem que seus títulos acadêmicos os tornam seres superiores e, por isso, temos de subsidiar sua vocação. Eu os convido a sair ao mercado com suas pesquisas e ver se pessoas se interessam por elas, em vez de esconder-se canalhamente atrás da força coercitiva do Estado”, disse Milei em fórum direitista em setembro.
Milei reduziu o repasse em valores reais de gastos com pesquisa e tecnologia na Argentina em quase um terço em termos anuais e estudantes e professores têm protestado nas ruas nas últimas semanas contra os cortes, que atingem todo o ensino superior do país.
Em valores nominais, o investimento por estudante universitário de instituições de gestão pública sofreu um corte orçamentários de 30,09%, passando de 2.725.965 pesos (cerca de US$ 2.400 pela cotação mais comum usada pelo mercado) por ano em 2023 para os atuais 1.905.654 (aproximadamente US$ 1.680), segundo relatório da Associação Civil pela Igualdade e Justiça (Acij).
Para os especialistas, porém, o desprestígio da academia por parte do Estado deve ter dois efeitos imediatos: o êxodo dos cientistas mais talentosos do país e a perda de espaço em um mercado global cada vez mais tecnológico e competitivo. “Se fizermos um recorte do que ocorreu de 2000 até aqui, veremos que, em termos de produção científica - medida em número de publicações na Scopus, a mais consultada base de dados de conteúdo acadêmico - a Argentina passa do terceiro lugar na América Latina, depois do Brasil e México, para o quinto, atrás do Chile e da Colômbia”, disse Marcelo Rabossi, especialista em Políticas de Educação Superior e professor da Escola de Governo da Universidade Torcuato Di Tella. “Sem levar em conta a qualidade das publicações, o volume mostra como a produção de pesquisa no país se desacelerou, em termos relativos”, afirmou.
Para os especialistas, porém, o desprestígio da academia por parte do Estado deve ter dois efeitos imediatos: o êxodo dos cientistas mais talentosos do país e a perda de espaço em um mercado global cada vez mais tecnológico e competitivo. “Se fizermos um recorte do que ocorreu de 2000 até aqui, veremos que, em termos de produção científica - medida em número de publicações na Scopus, a mais consultada base de dados de conteúdo acadêmico - a Argentina passa do terceiro lugar na América Latina, depois do Brasil e México, para o quinto, atrás do Chile e da Colômbia”, disse Marcelo Rabossi, especialista em Políticas de Educação Superior e professor da Escola de Governo da Universidade Torcuato Di Tella. “Sem levar em conta a qualidade das publicações, o volume mostra como a produção de pesquisa no país se desacelerou, em termos relativos”, afirmou.
Ele afirma que esse declínio nas publicações ocorre em todas as áreas de conhecimento. Na engenharia, na medicina, na matemática e nas ciências econômicas e empresariais. “Da mesma forma, o número de patentes concedidas pelos escritórios de propriedade intelectual do país está em queda - o que ocorre também em outros países da região”, disse Rabossi. “A resistência de Milei em manter o financiamento das universidades públicas e sua política fiscal draconiana deixam na penúria a pesquisa de ponta argentina, que já trouxe ao país três prêmios Nobel na área de ciências”, afirmou.
Bernardo Houssay ganhou o Nobel de Medicina, em 1947; Luis Federico Leloir recebeu o prêmio de Química, em 1970; e César Milstein também levou o Nobel de Medicina, em 1984. Todos iniciaram ou desenvolveram suas pesquisas com verbas da Universidade de Buenos Aires (UBA). Dois argentinos também ganharam o Nobel da Paz: Carlos Saavedra Lamas (1936) e Adolfo Pérez Esquivel (1980). Para efeito de comparação, apenas outros dois cientistas latino-americanos foram laureados com o prêmio em áreas de pesquisa: o venezuelano Baruj Benacerraf (Medicina, 1980) e o mexicano Mario Molina (Química, 1995). O Brasil, maior economia da região, não tem nenhum Nobel.
Apontada por seus colegas como uma das mais talentosas cientistas da atualidade na Argentina, a bioquímica Raquel Chan diz que o desfinanciamento das universidades vai impactar negativamente não só na ciência do país como um todo. “Isso vai afetar a formação das pessoas e as pessoas são os profissionais do futuro em todas as áreas e campos”, afirma Chan - ganhadora de vários prêmios por suas pesquisas de desenvolvimento de grãos como trigo e soja mais resistentes a secas. “Parece óbvio dizer, mas a qualidade dos profissionais de amanhã está hoje nas mãos dos professores - que precisam ser qualificados e, em grande parte, devem ser cientistas”, diz.
A professora estima que o esvaziamento quase total do sistema científico argentino deveria alarmar o governo. “Há um êxodo desses professores pesquisadores, que resultará na diminuição da qualidade do ensino. Os efeitos disso não serão visíveis em um dia ou um mês. Eles serão de curto e médio prazo, e serão irreversíveis. A reciclagem de professores de qualidade não é algo que possa ser alcançado em poucos anos”, afirma Chan, que é professora do Instituto de Agrobiotecnologia do Litoral (IAL), em Santa Fé.
“A fuga de cérebros ocorre a passos largos, e é difícil para nós entusiasmarmos os jovens para seguirem carreiras científicas. Para além das declarações dos governantes, não somos modelo porque trabalhamos muitas horas e ganhamos relativamente pouco. E isso é apenas parte do problema”, diz Chan. “O maior problema é que gastamos uma grande parte do nosso tempo tentando conseguir dinheiro para continuar trabalhando e financiar nossos suprimentos, reagentes, manutenção e reparos de equipamentos, etc.”
As pesquisas de ponta na Argentina estão sob a supervisão do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (Conicet), uma autarquia subordinada ao Ministério da Ciência e fundada nos anos 50 por Houssay, o ganhador do Nobel de Medicina de 1947. O organismo exerceu papel-chave no desenvolvimento do programa de energia nuclear argentina e, hoje, coordena pesquisas avançadas importantes em áreas que vão do combate ao câncer à nanotecnologia e às ciências climáticas. Mas o financiamento estatal para estas pesquisas - que já vinha minguando durante os últimos anos de crise econômica crônica da Argentina - está hoje próximo de zero.
Desde sua vitoriosa campanha para a Presidência argentina, no ano passado, Milei havia prometido a chefia do Conicet ao médico veterinário Daniel Salomone - um especialista em clonagem animal que teria influenciado a decisão do hoje presidente de clonar seus cães nos EUA.
Salomone, um libertário como Milei, defende que a iniciativa privada assuma os custos das pesquisas que julgar importante - algo que a maior parte dos cientistas consideram inviável. “Pesquisas de excelência nem sempre têm aplicação comercial imediata”, disse um bolsista do Conicet que, temendo represálias, pediu para não ter seu nome divulgado. “Em praticamente todos os lugares do mundo a pesquisa científica pura atrai o interesse e é financiada por laboratórios do Estado”, disse a fonte.
“A dinâmica de aplicação científica passa pelo financiamento da pesquisa teórica, que atrai a atenção de ‘investidores anjos’ privados para a criação de startups viáveis”, disse o bolsista. “Hoje, na Argentina, mal temos a perspectiva de concluir a pesquisa teórica.”
O salário bruto mensal de um assistente de pesquisa hoje no conselho de pesquisa Conicet da Argentina é o equivalente a em torno de US$ 1.180 - cerca de 30% menos do que há um ano, segundo institutos científicos da rede Autoridades de Institutos de Ciência e Tecnologia da Argentina, organismo fundado neste ano por cientistas ligados ao Conicet, universidades e entidades técnicas de todo o país para defender o interesse da pesquisa científica.
Em março, 68 laureados com o Nobel de diversos países expressaram preocupação em uma carta sobre o sistema de pesquisa pública da Argentina se aproximando de “um precipício perigoso”.
Segundo um estudo de 2022 do Ministério da Ciência argentino, mesmo antes dos cortes deste ano, o país investe cerca de 0,31% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em ciência, enquanto o Brasil investe 1,21%. Os EUA aplicam 3,45% e a Coreia do Sul, 4,9%.
“Sim, é verdade que deveríamos envolver mais o setor privado em termos de investimento em ciência, e especificamente na fase aplicada, uma vez que a fase teórica [ou pura], independentemente do país, permanece majoritariamente nas mãos do Estado”, afirmou o professor Rabossi. “Na verdade, na Argentina, apenas 20% do investimento total em ciência e tecnologia vêm de empresas, sejam elas públicas ou privadas - enquanto a média da América Latina é de 37%”, disse. “Mas o financiamento público para o aparelho científico não só não deveria ser reduzido, como também deveria ser aumentado - para detectar oportunidades de investimentos nos setores mais estratégicos e gerar incentivos para envolver o setor privado e investir em pesquisa e desenvolvimento”, disse Rabossi.
“O sistema de educação pública foi formado no começo do século passado como um símbolo do que a Argentina queria ser”, disse o professor na Universidade Nacional de La Plata Guillermo Justo Chaves - que foi chefe de Gabinete da Chancelaria argentina entre 2019 e 2021. “Esse sistema trazia junto a possibilidade da mobilidade social ascendente e a aspiração de termos um país de classe média, no qual todos teriam a oportunidade e a possibilidade de se desenvolver. Isso era um pouco o sonho e o espírito da Argentina”, afirmou.
“A qualidade derivada desse esforço resultou não só em prêmios Nobel, mas também em destacados trabalhos científicos - que têm transcendência em nivel mundial”, prosseguiu Chaves.
Chaves diz que, do ponto de vista mais concreto, o corte no financiamento à pesquisa terá um impacto importante na economia do país como um todo. “Diante de tudo que tem a ver com investimento no campo tecnológico - numa época em que conhecimento se torna mais valioso do que nunca -, cortar verbas de pesquisas significa simplesmente ir contra o futuro e a autonomia do país.”
“A ideia de a Argentina se tornar um pais desenvolvido e com padrões de bem-estar, PIB e produção de riqueza dos países líderes do mundo não coaduna com o desinvestimento em pesquisas e com cortes de verbas para as universidades”, prosseguiu Chaves. “O que temos hoje é um país onde não queremos estar - um país de economia baseada em commodities e meramente extrativista - longe de incluir-se no contexto das economias mais desenvolvidas”, disse.
A bioquímica Chan tem uma visão parecida à de Chaves. “Está claro que apenas os países que investem na ciência aumentam o seu PIB e o rendimento per capita de forma significativa”, disse. “Noruega, Alemanha, Coreia do Sul, Israel, etc, são os modelos de países cuja população se beneficia do investimento em ciência. Vivemos uma situação na Argentina que impactará negativamente a produção e a geração de conhecimento e tecnologia porque o valor da ciência e da educação está sendo desconsiderado”, analisou Chan.